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Bugre

Hoje o céu ganhou outro convidado. E por ser tão difícil lidar com a realidade triste que decidi mudar algumas coisas nessa história.

Uni duas personalidades únicas dessa família tão incrível em um personagem, quem conhece saberá.

Beijo da Preta.

Já era tarde da noite quando o Bugre velho ao meu lado cutucou-me o ombro para que eu o ajudasse no caminho até o banheiro. Levantei e, com muito zelo, segurei meu gaúcho pelo braço, indo aos passitos pelo corredor.

Em seguidinha estávamos os dois deitados na cama, o Bugre tapado até o pescoço. Era noite de inverno e, de certo, de manhãzita iria gear. Meu Bugre velho virou o corpo de lado para me olhar e abriu aquele sorriso, já sem dentes, o mesmo sorriso de anos atrás.

— Lembra, minha chinoca? Fazia um frio como este, se não pior, quando te conheci.
— Lembro, claro que sim. Mas vamos que já é hora de dormir.
— Espera… As vezes me falha a memória e já nem sei direito das coisas. Agora voltou tudo, parece que foi há tão pouco tempo…

“Era um baita gauchão. Um metro e noventa, ombros largos, e não sei se mais metido ou se mais brigão. Gostava de fazer arruaça nos chinaredos e sempre saía com a china mais guapa no lombo do baio. Bugre de nome e de raça! Assim chamavam porque assim havia de ser, sempre com o facão do lado e qualquer desaforo era motivo de retalhar o tal atrevido!

Mas aquela chinoca desarmava qualquer gaúcho metido.

Fazia cinco graus, naquele friozão de setembro, ia até o bolicho para beber e falar de futebol quando a vi naquela rua pela primeira vez. A guria tinha um encanto, os cabelos louros trançados até as costas e mesmo com um abrigo de invernaço via-se as curvas daquele corpo de moça. Ela varria a calçada em frente a casa que devia morar, e eu fiquei tomado só pela presença dela. Juro que fiquei algum tempo admirando e até mesmo pensando em como prosear com aquela lindeza. Decidi, então, passar pela calçada, e fosse o que fosse!

— Tarde!

A guria ergueu os olhinhos e ficou rubra, toda vermelhinha. Não pude evitar o sorriso largo e me abanquei para prosearmos. Ali de pertinho era ainda mais guapa, a gauchinha. Apressentei-me e perguntei o nome da bela.

Édila, ela me respondeu, tímida, e naquele momento soube que seria minha.

Casamos, tivemos sete filhos e hoje, bem de pertinho, ainda vejo os olhos e a beleza daquela que laçou meu coração.”

Ouvi meu Bugre terminar a história e senti uma lágrima escorrer. Ele a beijou no canto dos meus olhos e me tapou até o pescoço, nos escondendo debaixo das cobertas.

— Daqui a pouquinho não terá mais dor, minha chinoca. E ficaremos juntos para sempre.

Dormimos juntinhos como na primeira vez. Agora estava descansada. Não estava mais sozinha.

Tio Tô e Péia.

Descansem em paz.

27 de fevereiro

Vó:

Lembra de quando eu era criança e você fingiu ter comido meus tomates de brinquedo? Acreditei até o último minuto, quando você viajou de volta para o Rio Grande do Sul e deixou uma carta devolvendo as fatias de tomate. 

Você se foi e levou uma parte de mim. Uma parte de palavras, de lágrimas, e aquele pedacinho do meu coração que sempre foi reservado a você. Se foram assim que sua respiração cessou e eu tive que te chamar só para tentar fazer com que escutasse minha voz e ficasse um pouco mais.

Egoísmo. Saudade. Amor.

Eu sabia que você já estava pronta. Tínhamos nos despedido um pouco antes, quando suas mãos ainda seguravam as minhas, seus olhos procuravam os meus e sua boca mandava-me beijos, mas eu nunca consegui pensar em uma realidade em que você não estivesse mais por aqui.

A rua Visconde de Pelotas perdeu sua presença forte e imponente. Perdeu seu cheiro de Natura Homem, de talco, e a cor de seu batom vermelho. 

O segundo dia de sua partida foi pior do que o dia em que seu coração parou de bater. Foi quando percebi que nunca mais a veria. Porque enquanto ainda estava ali, linda, deitada, parecia apenas um sono profundo, logo você abriria os olhos e aquele sorriso gostoso de guria faceira, impossível de não retribuir.

Apesar da dor, hoje tenho a certeza de que você está muito melhor que todos nós. Não precisa mais de cama ou de remédios. O céu está em festa, com todas as cervejinhas que sempre gostou de tomar e com o vô Hugo, que com certeza a tirou para uma dança. Ele esperou muito tempo pela gaúcha mais linda, aquela que colocava todas as outras no bolso.

Dança, minha guria. Ri, brinca, dança e cuida de todos nós que sofremos com a saudade de não poder mais sentar no seu colo e receber suas carícias.

Agradeço pelo tempo que tivemos juntas.

Eu amo você. E tive a oportunidade de dizer isso mais de uma vez.

27 de Janeiro

ImagemCompletado um ano da data que marcou para sempre.

Quando penso na tragédia da Kiss, penso em como o tempo e as circunstâncias mudam tudo em nossa vida. Lembro de quando a Kiss era apenas uma boate, bem frequentada, cheia de boas lembranças. Lembro de ter ido apenas uma vez, em tempos melhores. Hoje, a Kiss tem uma conotação ruim, de dor e saudade.

O tempo passa rápido, lembro do dia 27 de janeiro de 2013 como se fosse há poucos dias. Lembro da sensação ruim de estar vivendo um pesadelo, do medo de ter algum conhecido, do sentimento pesado no peito. Uma tristeza que tomou conta da cidade – e do mundo.

Não conhecia ninguém que estava lá, mas a tristeza é inevitável. 242 mortes. 242 histórias interrompidas. 242 possíveis amizades. E se eu viesse a conhecer aquele rapaz do sorriso bonito? Aquela menina simpática? Aqueles irmãos inseparáveis? São tantos sentimentos, tantas recordações. Tantas tristezas. É tudo tanto, que nem dá para explicar ou descrever. Só sabe quem viveu a dor de perder um pedacinho de si.

Santa Maria parou no dia 27 de todos os meses. Santa Maria ainda para quando lembra de cada sorriso que se foi. Mas ao mesmo tempo, Santa Maria ficou tão unida que não poderia ser conhecida de outra maneira que não fosse “Coração do Rio Grande”.

Santa Maria, nome merecido de nossa Mãe do Céu. Cheia de histórias, de tristezas e alegrias, de uma força sem igual.

Vi toda a solidariedade de pessoas que não tinham nada a ver com o ocorrido, mas que se sensibilizaram de uma forma indescritível. Vi o amor renascer das cinzas. Doeu. Ainda dói, bem no cantinho do coração. Mas a vida segue, ainda que a saudade lateje e a gente pense em desistir.

Sei que nada do que eu disser fará muito sentido comparado a tanta dor e sofrimento, mas minha maneira de rezar é escrevendo. Cada palavra é um sentimento, uma oração, um desejo de dias melhores a todos nós.

Que essa rosa branca represente a paz de corações silenciados, carregados de uma saudade pura que nunca vai sarar. Que cada coração vivencie a esperança de uma manhã melhor, sem esse sabor amargo.

Força, Santa Maria.

Aqueles que ficam

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Observamos o céu, admirando aqueles que vão.

Escutamos o trotar ritmado, o galope rápido daqueles que correram contra o tempo e que esperam chegar na grama mais verde. O céu chora naqueles que ficam e recebemos gotas das lágrimas de nuvens túrgidas, inconformadas, nuvens cheias de um sentimento quieto.

Aqueles que ficam gritam para o céu. O céu chora em resposta, não de tristeza, mas para regar a grama daqueles que ficaram. Esse choro que faz crescer uma nova grama, uma nova árvore, uma vida nova toda verdinha.

Escuto o choro dos que ficam, e no meio deles sinto as gotas molharem a mim. Seguro as lágrimas para regar minha vida, sabendo que o jardim deles também florirá depois dessa chuva.

E, um dia, todos nós trotaremos no mesmo ritmo, unidos àqueles que foram, esperando aqueles que vão e derramando chuva na grama nova daqueles que ficam.